terça-feira, 19 de julho de 2011

A Sofisticada Educação Atrasada dos Povos Tribais

Nós, ocidentais pós-modernos, temos a tendência de sempre olhara para o novo com bons olhos. Uma nova descoberta da medicina nos dá esperança; uma nova tecnologia nos anima; uma nova moda nos atrai; uma nova história nos fascina... Por conta disso, estamos sempre atrás do novo, do melhorado, do atualizado, do renovado, do criado, do descoberto...
Em contrapartida, nossa inclinação natural (ou seria social?) é desdenhar o que é antigo, velho, ultrapassado, etc... Neste sentido, vivemos conforme o dizer: “Fora com o velho; viva o novo!”.
Ao tratarmos de educação, o quadro é o mesmo: queremos novos métodos, novos materiais, novas estratégias, novas abordagens, novos conhecimentos e novas formas de instruir as crianças. Entretanto, se você é adepto da Educação Domiciliar, sinto em lhe dizer que esse pensamento vai, justamente, na contramão do que significa ensinar os filhos em casa... Com efeito, alguém que deseja ensinar os filhos em casa precisará, necessariamente, ter uma visão retrógrada da educação.
Com certeza, essa afirmação deve ter incomodado a maioria de vocês, mas preciso continuar...
Para explicar melhor o que estou tentando dizer, vou usar um exemplo prático: os povos tribais. Em geral, os ocidentais pós-modernos tendem a ver culturas tribais como atrasadas e precárias. Vemos com maus olhos a falta de higiene, precariedade da medicina, limitação da alimentação, tosquice das habitações e, claro, o atraso cultural e educacional desses povos. Muitas vezes, tendemos a ter pena dessas pessoas e pensamos: “Coitados... Esses povos não têm as mesmas oportunidades que nós de receber uma boa educação... Se eles não saírem de suas tribos para ir a uma escola ou fazer uma faculdade estarão fadados a morrer em sua ignorância...”.
Com essas ou outras palavras, creio que a maioria de nós já teve esse sentimento de pena. Entretanto, são os povos tribais que deveriam olhar com muita pena para nós e nossa “educação sofisticada”.
Façamos uma rápida comparação entre as educações antagônicas as quais nos referimos:
Em nossa educação “sofisticada”, as crianças precisam aprender uma quantidade absurda de informações que nunca aproveitarão para nada, enquanto não são instruídas em questões básicas que se farão necessárias todos os dias de sua vida. Já na educação “atrasada” dos povos tribais, a educação das crianças é baseada totalmente nos conhecimentos, habilidades e competências fundamentais que o sujeito irá precisar para sua vida.
Na cidade, em geral, quem ensina as crianças é um profissional formado que não possui qualquer ligação direta com o educando. Na tribo, a família é responsável integralmente pela formação de seus filhos.
Os “civilizados” avaliam a quantidade de informação decorada e congratulam as crianças que mais rapidamente memorizam esses dados, podendo recitá-los quando requisitado. Em contrapartida, os “primitivos” avaliam o amadurecimento cognitivo, emocional, familiar, social, físico e moral, exaltando as pessoas que usam na prática o que aprenderam para o bem-estar da sua família e de toda a sociedade ao seu redor.
No “nosso mundo”, os intelectuais possuem grandes bibliotecas cheias de informações para quando precisarem pesquisar. No “mundo deles”, cada pessoa madura é uma biblioteca cheia de sabedoria e conhecimento.
Enfim, poderíamos passar dias contrastando a educação ocidental pós-moderna e a educação tribal, mas isso não se faz necessário. Creio que os poucos pontos apresentados até o momento são suficientes para demonstrar que, sem sombra de dúvida, a educação tribal é superior à educação (dita) civilizada.
Com isso estou sugerindo que todos deixemos nossas casas e nos mudemos para uma tribo a fim de instruir nossos filhos de forma adequada? Não! Caso alguém sinta-se impelido a fazer isso, pode fazê-lo, mas meu intento não é incentivar um êxodo urbano...
O que pretendo com este artigo é provocar uma reflexão sobre o paradigma da validação do novo pelo novo. Precisamos destruir a ideia de que algo é bom só porque é novo e de que o novo, necessariamente, é superior ao antigo! Algo novo pode ser bom, mas somente o será se apresentar uma justificativa para tanto. Há um sem número de coisas consideradas “atrasadas” que, na verdade, são infinitamente superiores às modernas.
Poderíamos listar uma infinidade de elementos que, mesmo antigos, são superiores, mas, foquemos na educação...
A educação tribal é superior porque ocorre de forma lógica e natural. A educação moderna é inferior porque, ao invés de seguir o curso natural, é estribada na tentativa constante de “descobrir” novas formas de levar a instrução a níveis cada vez mais próximos de um ideal que ainda não foi descoberto. É como se a “educação ideal” estivesse em algum lugar desconhecido e precisássemos criar novas teorias, novos métodos, novas filosofias educacionais para chegar mais perto dessa instrução máxima.
Com efeito, esse pensamento está errado!
É claro que devemos ser progressistas com relação à formação pessoal de cada sujeito, mas, em termos de configuração do modelo educacional, não precisamos inventar a roda de novo...
Ao contrário do que muitos podem pensar, a Educação Domiciliar não é um movimento “novo”, e muito menos revolucionário. Ao contrário, é o resgate de um modelo que sempre existiu – mesmo antes da invenção da escola.
A educação tribal é um grande tesouro, pois nos mostra como a instrução das crianças sempre deveria ter sido: baseada no desenvolvimento fundamental para a vida em sociedade e mantendo-se sob responsabilidade total da família em todos os aspectos (cognitivo, emocional, físico, espiritual e sócio-afetivo).
Se você está ensinando seus filhos em casa ou pretende fazê-lo, paute-se nisso.
Note: não estou dizendo que tudo o que vem da modernidade ou pós-modernidade é ruim, está errado e deve ser erradicado da educação de nossos filhos... Não! Há muitas teorias, descobertas, materiais, métodos e outras ferramentas muito úteis para instruirmos nossas crianças. Entretanto, esses elementos são ferramentas, e não determinantes do processo.
Use tudo o que puder para qualificar a instrução de seus filhos: psicologia, pedagogia, tecnologia, etc... Mas, nunca permita que essas descobertas tirem o foco do que realmente é importante para educar uma criança em casa: o amor e a responsabilidade familiar em ajudar a criança em seu desenvolvimento global.
É exatamente isso que vemos nos povos tribais: uma responsabilidade pessoal e coletiva na formação de sujeitos maduros e úteis para a sociedade.
É absurdo acharmos que, ao esquecer esses princípios, nos tornamos mais “civilizados”...
Podemos, até, considerar a falta de higiene, precariedade da medicina, limitação da alimentação e tosquice das habitações como itens negativos de um povo tribal. Entretanto, não podemos ter a audácia de afirmar que sua educação é inferior à nossa. Pode ser que lhes falte volume de informação, mas não falta qualidade de educação.
Se você quer ensinar em casa, pelo menos no aspecto dos paradigmas educacionais, seja mais tribal e menos civilizado.
Para encerrar, deixo o seguinte provérbio africano para reflexão:


Quando um homem (tribal) morre, é como se uma biblioteca inteira se incendiasse”

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Ensino Domiciliar - Papel da Mãe ou do Pai?

Uma discussão que considero bastante interessante e pertinente diz respeito aos papéis exercidos pelos pais na educação de uma criança. Inúmeros estudos já demonstraram de forma clara e precisa que a presença de ambos os pais e uma delineação adequada de seus papéis, sem sombra de dúvida, são determinantes para a constituição de um sujeito equilibrado, bem formado e apto para o convívio social.
Agora, o que gostaria de trabalhar é, justamente, como esses papéis referentes aos pais se traduzem na prática do ensino domiciliar. Afinal, quem deve ensinar as crianças: o pai ou a mãe? Quem deve determinar os conteúdos, propôr os exercícios, transmitir os conhecimentos, aplicar as avaliações, etc?
Para algumas famílias, esta pode parecer uma questão simples, para outras, nem tanto...
Definitivamente, ambos os pais possuem papel fundamental na formação de uma criança, e digo isso me referindo a todos os aspectos dessa formação. Desde o desenvolvimento da comunicação, passando pelo sinestésico-motor, emocional, intelectual e chegando ao sócio-afetivo. Pai e mãe são parceiros no ensino e direcionamento em todas essas esferas, e precisam compreender isso. Agora, mesmo sendo parceiros, as funções de cada um não são as mesmas.
Sem dar margem para especulações sobre minha posição ideológica sobre homens e mulheres, neste ponto já deixo claro que não considero o masculino e o feminino gêneros iguais. Isso não quer dizer, entretanto, que um é superior ou melhor que o outro (de forma alguma!). Mas, para mim, é claro como o dia que homens e mulheres não são, nunca foram e nunca serão iguais. E não pauto esse pensamento em mera ideia pessoal, mas na própria ciência – afinal, é fato inquestionável que homens e mulheres possuem diferenças cromossômicas, anatômicas, hormonais, neurais e psíquicas.
Volto a dizer: essa diferença não quer dizer que um é melhor ou pior que o outro, mas que há diferença entre os gêneros. O que devemos considerar é que homem e mulher possuem o mesmo valor... Neste sentido, sim, possuem um valor igual, são importantes de igual modo e devem possuir igualdade nas oportunidades desta vida. Mas, afirmar que homens e mulheres são iguais é quase tão absurdo quanto afirmar que madeira e concreto são a mesma coisa...
De fato, essa diferença entre os gêneros é algo maravilhoso! Afinal, o que causa a atração entre homem e mulher é, justamente, a possibilidade de um se ver completado pelo outro. Somos atraídos por aquilo que nos falta, que não temos, que nos completa, e não por algo que já somos ou temos em nós mesmos. Isso sim é fantástico!
Mas, voltando à educação domiciliar...
Justamente por haver essas várias diferenças entre homens e mulheres, a presença de ambos os pais é fundamental para a formação da criança. Com efeito, por mais dedicado e presente que seja um pai, este nunca poderá suprir aquilo que é oferecido pela presença materna. Da mesma forma, é impossível para uma mãe suprir totalmente o aprendizado que a influência masculina proporciona para a criança. De um lado: firmeza, segurança, suprimento, racionalização, intelecto; do outro: flexibilidade, auxílio, mantimento, sensibilidade e emoção. Esses elementos são mais fortes em um dos pais e, por isso, ambos os progenitores são importantes para que a criança tenha acesso a todas essas características de forma igual nos momentos adequados.
Com isso, não pretendo menosprezar os pais e mães que têm sido “guerreiros” ao instruir seus filhos sem a presença de um cônjuge... Há pais solteiros e mães solteiras que são verdadeiros heróis, realizando milagres para educar seus filhos de uma forma adequada. Entretanto, tenho certeza que essas mesmas pessoas poderão aferir que, por mais que se dediquem e se sacrifiquem, sempre há algo que falta...
Por que isso acontece? Porque uma só pessoa não pode agir de acordo com todos os comportamentos necessários para que uma criança se desenvolva de forma saudável.
Permitam-me um exemplo: se há somente um dos pais, não haverá relações de autoridade... O pai ou a mãe não terá um cônjuge para discutir as decisões que precisam ser tomadas e, assim, a criança não terá a oportunidade de crescer através da observação desse tipo de relação. A criança nunca verá os pais dividindo tarefas, trabalhando em equipe, discutindo e se reconciliando, etc... Enfim, há uma infinidade de conhecimentos que a criança só poderá adquirir se houver a presença de ambos os pais.
Além disso, a própria definição de masculino e feminino fica comprometida quando da ausência de um dos pais – e isso causa muito mais problemas do que se pode imaginar!
Diante disso, creio que chegamos a uma primeira conclusão bastante interessante: para a Educação Domiciliar – ou melhor, para o próprio desenvolvimento de qualquer criança –, o ideal é que ambos os pais estejam presentes.
Isso quer dizer que pai e mãe precisam estar o dia todo em casa, acompanhando a criança? De forma alguma! Não é disso que estou falando... Mas, me refiro à importância dos pais participarem efetivamente da instrução das crianças sempre que possível, não se tornando alheios ao que está acontecendo com seus filhos. Uma conversa, uma brincadeira, algumas perguntas, um passeio... Tudo isso é “estar presente”, tudo isso é participar da educação de uma criança.
Agora, retomando as questões que levantei no início deste artigo, é incontestável que algum dos pais precisará, necessariamente, assumir a missão de instruir mais diretamente os filhos. E, na maioria das vezes, essa função tem caído sobre os ombros maternos. Por quê? Porque, em geral, as mães passam mais tempo cuidando da casa e dos filhos, enquanto o pai sai para trabalhar. Sei que esse não é o caso de 100% das famílias que ensinam em casa, mas, a maioria ainda apresenta essa organização familiar.
Há algum problema com essa configuração? De forma alguma! Ao contrário: creio que as experiências práticas, até o momento, têm demonstrado ser bastante positivo que a mãe assuma o cargo de “professora”, instruindo a criança na maior parte do tempo. Entretanto, nada impede que haja alguma organização diferente... Se o pai puder assumir integralmente o ensino dos filhos, creio que será tão positivo quanto. E, se ainda for possível que os pais dividam os períodos de ensino de forma mais ou menos equilibrada, isso poderá ser melhor ainda.
Qualquer um desses esquemas de divisão de responsabilidades é válido, desde que haja plena concordância dos pais e constância na rotina de estudos.
Para finalizar, gostaria de apontar um cuidado necessário para qualquer uma das configurações que descrevi... E esse cuidado se refere à importância de evitar o afastamento de um dos pais... Como disse anteriormente, a presença de ambos os pais é necessária para a formação da criança. Mas, a existência de pai e mãe vivendo sobre o mesmo teto não é sinônimo de “presença dos pais”... Infelizmente, em muitos casos, os pais trabalham tanto que, quando chegam em casa, os filhos já foram dormir... Da mesma forma, saem tão cedo que não veem as crianças. Já no final de semana, estão tão cansados e estressados, que só querem saber de descanso, um churrasquinho e futebol... Em outros casos, as mães estão o dia todo em casa, mas querem deixar tudo tão limpo e organizado, que deixam os filhos à mercê da televisão, videogame, brinquedos, etc... Em qualquer um desses casos, os pais estão ali, mas não estão presentes de fato!
No caso da educação domiciliar, se um dos pais ficar responsável por instruir os filhos, o outro precisa tomar muito cuidado para não ser um desses pais-fantasmas, que “está ali”, mas não participa efetivamente da educação das crianças. Um dos maiores perigos na Educação Domiciliar é, justamente, um dos pais se tornar ausente por considerar que seu cônjuge é que está responsável pela instrução das crianças!
A mãe pode ser responsável pela maior parte do ensino, mas isso não exime o pai de seu papel enquanto figura de instrução – e vice-versa! Com efeito, a Educação Domiciliar é um trabalho para pai e mãe, e, de forma alguma, pode cair somente sobre um destes! As funções dentro da instrução dos filhos podem ser diferentes para pai e mãe, mas a responsabilidade de ambos é a mesma!!!
Se você trabalha o dia todo, quando chegar em casa, pelo menos, coloque seus filhos na cama... Conte uma história (mesmo curta), ou apenas converse com eles, perguntando como foi o dia, o que aprenderam, etc. Se for possível, assuma, pelo menos, um tipo de conteúdo para passar para eles durante uma ou duas horas do final de semana. Pense em projetos que possam fazer juntos nos feriados ou dias de folga... Enfim, participe da educação de seus filhos, e não deixe tudo para seu cônjuge!
Mas eu só tenho 15 minutos com meu filho por dia!”. Então, faça desses os melhores 15 minutos do dia do teu filho! Com certeza, já será o suficiente para não ser um pai-fantasma.
Por mais que seja difícil, por mais que você esteja cansado e/ou estressado, se esforce... Afinal, é o desenvolvimento pleno e saudável do teu filho que está em jogo!

segunda-feira, 4 de julho de 2011

A Situação Jurídica do Ensino Domiciliar no Brasil

A inexistência de expresso tratamento legislativo e constitucional sobre o tema
O ensino domiciliar, como substituto do ensino escolar, não é proibido expressamente por nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro, seja constitucional, legal ou regulamentar. Nem, tampouco, é expressamente permitido ou regulado por qualquer norma. O fundamento dessa omissão é bastante simples: o assunto somente está sendo debatido no Brasil recentemente e, ainda, de forma tímida.
Existe, pois, uma lacuna na legislação brasileira: os dois principais documentos que tratam de educação (Constituição Federal – CF, art. 205 a 214, e Lei 9.394/98 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB) sequer mencionam a educação domiciliar. Também não consta dos debates legislativos que deram origem a esses textos a discussão a respeito da educação domiciliar.
Mesmo em casos como esse, não se pode deixar de caracterizar um fenômeno social como legal ou ilegal, pois não existem fatos “alegais”, ou seja, à margem do Direito. Apenas essa omissão já é suficiente para, de forma preliminar, declarar a validade da educação domiciliar, pois a CF tem como um dos pilares o princípio da legalidade (art. 5°, II), que considera lícita qualquer conduta não expressamente proibida em lei.

Duas questões fundamentais
Como a mera inexistência de proibição ainda pode gerar dúvidas naqueles que consideram o tema por demais estranho, deve ser verificada, então, a adequação do fato em discussão ao espírito das normas vigentes. Em outros termos, além de não existir norma expressamente proibitiva, procurar-se-á determinar a existência ou não de normas que apoiem a aplicação do ensino domiciliar.
A questão da licitude ou ilicitude da educação domiciliar será analisada gradativamente, ao se procurar responder a algumas perguntas essenciais. Ao responder essas perguntas, procurar-se-á seguir a hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro: Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos (no caso, a Declaração Universal dos Direito Humanos – DUDH, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948) e leis ordinárias (no caso, a LDB, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – e o Código Civil – CC).
A primeira questão essencial é: a quem compete prover a educação?
Não há controvérsia a esse respeito, sendo a obrigação compartilhada entre a família e o Estado, conforme demonstram os seguintes dispositivos:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (CF – grifou-se).

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (LDB – grifou-se).

Sendo o Estado e a família responsáveis pela educação, a próxima pergunta é: a qual deles compete a primazia na educação dos filhos menores?
A resposta é dada de forma cristalina, respectivamente, na DUDH e no CC:

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos (artigo XXVI – grifou-se).
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação (grifou-se);

Portanto, os pais têm os deveres de educar e de dirigir a educação dos filhos e, para cumpri-los, podem utilizar-se dos métodos que acharem mais pertinentes: matricular os filhos em uma escola, ensiná-los em casa ou utilizar qualquer outra forma intermediária. Nesse sentido, o Estado somente pode tomar para si a educação do menor caso a família não tenha vontade ou condições de educá-lo em casa.
Por cautela, porém, deve se considerar a conclusão alcançada no parágrafo anterior como, ainda, provisória. Para torná-la definitiva, é necessária a apreciação de todos os dispositivos constitucionais, legais e regulamentares pertinentes à matéria.

Aspectos constitucionais
Inicialmente, deve ser analisado o art. 208 da CF:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;
(...)
§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

O inciso I do mencionado artigo não obriga à escolarização, mas à educação, que é conceito bem mais amplo. Sua interpretação é bastante simples: a educação, que começa com o nascimento do indivíduo, deve assumir uma feição formal quando ele tem de 4 a 17 anos, ou seja, deve cumprir as finalidades enumeradas no art. 203 da CF:

  1. pleno desenvolvimento da pessoa;
  2. seu preparo para o exercício da cidadania; e
  3. sua qualificação para o trabalho.

Para alcançar essas finalidades, os pais podem, se tiverem as condições necessárias, educar os filhos em casa. Mais ainda: de qualquer forma, a educação deve ser realizada em casa. A própria CF reconhece isso ao dispor, no art. 229, que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”. Portanto, a educação domiciliar não apenas é permitida, mas também exigida dos pais.
Por questões meramente práticas, a imensa maioria dos pais prefere delegar parte da educação à escola, seja pública ou privada. Geralmente, não há tempo, conhecimento ou disposição para ensinar os filhos em casa. Trata-se de uma opção majoritária, sustentada e amparada pela CF, que prevê a existência de escolas públicas e privadas.
Há, porém, uma minoria, que não aceita delegar nenhuma atribuição educacional à escola, que prefere exercer de modo absoluto uma atribuição que, na maior parte da história da humanidade, sempre foi da família. Em qualquer democracia constitucional, essa minoria, como qualquer outra, deve ser respeitada, com base no pluralismo político (CF, art. 1°, V) e, mais especificamente, no “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (CF, art. 206, III), um dos princípios fundamentais do ensino.
Juridicamente, a questão da delegação sempre envolve precedência e hierarquia, ou seja, o delegante é aquele que tem a competência, o dever de praticar determinado ato e que pode, voluntariamente, transferir parte das suas atribuições para outra pessoa, o delegatário. Essa transferência pode ser revogada a qualquer tempo, sendo que o delegatário somente tem os poderes expressamente conferidos pelo delegante.
Nesse sentido, não pode haver dúvida de que, em termos históricos, antropológicos e políticos, a família tem precedência sobre o Estado. Essa situação é reconhecida expressamente pela CF, que dispõe: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. O Estado é, portanto, uma estrutura auxiliar à família, que deve, geralmente, apoiá-la; e, apenas excepcionalmente, substituí-la, quando esta mostrar-se sem força suficiente para prover as necessidades básicas de seus membros.
Assim, o § 3° do art. 208, referido anteriormente, deve ser interpretado em consonância com todos os dispositivos constitucionais, e não de forma isolada. Isso significa que cabe ao Poder Público zelar pela frequência à escola apenas das crianças e adolescentes que não recebam o ensino domiciliar.
Em síntese: constitucionalmente, a educação domiciliar é um dever da família, que perde boa parte do sentido de sua existência se não provê-la para seus membros mais frágeis. Também é um direito individual dos pais, que somente deixarão de exercê-lo se não puderem ou não quiserem.

Aspectos infraconstitucionais
O art. 6° da LDB determina aos “pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental”. Esse dever, porém, não se aplica aos pais que optaram pelo ensino domiciliar por um motivo muito simples: o objeto da lei não é a educação em geral, mas apenas aquela ministrada nas escolas: “esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” (art. 1°, § 1°). Defender interpretação diversa seria como pretender aplicar o Código de Trânsito Brasileiro, que trata apenas dos veículos terrestres, a aviões e navios.
Mesmo que, apenas por hipótese, a LDB seja considerada como uma lei aplicável a qualquer modalidade de ensino, deve-se atentar para o fato de que ela mesma não exige que o aluno da educação básica (formada pela educação infantil e pelo ensino fundamental e médio) tenha escolarização anterior:

Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:
(...)
II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita:
(...)
c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino;

O dispositivo referido permite expressamente que um aluno ingresse em algum dos níveis da educação básica sem necessidade de ter frequentado anteriormente a escola: basta a realização de uma avaliação que meça seu grau de desenvolvimento. Trata-se de simples regra de bom-senso, que determina prioridade do efetivo aprendizado sobre o mero comparecimento em sala de aula.
O mesmo bom-senso foi utilizado pelo Governo Federal ao estabelecer que a aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tem como consequência a expedição de um certificado de conclusão do ensino médio. Essa norma está contida na PORTARIA NORMATIVA N° 4, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2010, expedida pelo Ministro da Educação:

Art. 1º O interessado em obter certificação no nível de conclusão do ensino médio ou declaração de proficiência com base no Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM deverá acessar o sítio eletrônico (http://sistemasenem2.inep.gov.br/Enem2009/), com seu número de inscrição e senha, e preencher o formulário eletrônico de solicitação de certificação, de acordo com as instruções pertinentes, até o dia 31 (trinta e um) de março de 2010.

Art. 2º O interessado deverá observar os seguintes requisitos:

I - ter 18 (dezoito) anos completos até a data de realização da primeira prova do ENEM;
II - ter atingido o mínimo de 400 pontos em cada uma das áreas de conhecimento do ENEM;
III - ter atingido o mínimo de 500 pontos na redação.

Parágrafo único. Para a área de linguagens, códigos e suas tecnologias, o interessado deverá obter o mínimo de 400 pontos na prova objetiva e, adicionalmente, o mínimo de 500 pontos na prova de redação.

Art. 3º O INEP disponibilizará às Secretarias de Educação dos Estados, Municípios e do Distrito Federal e aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia as notas e os dados cadastrais dos interessados, nos termos do art. 1º, por meio do sítio (http://sistemasenem.inep.gov.br/EnemSolicitacao/

Art. 4º Compete às Secretarias de Educação e aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, definir os procedimentos para certificação no nível de conclusão do ensino médio com base nas notas do ENEM 2009.

Nessa portaria, há um dispositivo de suma relevância: o art. 2°, que enumera os requisitos para a obtenção do certificado de conclusão do nível médio: o postulante precisa apenas ter 18 anos e alcançar uma pontuação mínima. A relevância do dispositivo está exatamente naquilo que omite, pois não requer, para a obtenção do certificado, a comprovação de que foram concluídas regularmente todas as séries do ensino fundamental e médio.
Assim, aquele que foi educado em casa poderá fazer o ENEM e, caso preencha os requisitos, conseguir um certificado de conclusão do ensino médio. Implicitamente, o Ministério da Educação reconheceu como válida a educação domiciliar, adotando uma noção material de ensino médio (determinado nível de desenvolvimento intelectual) ao invés da tradicional concepção formal (número de séries frequentadas pelo aluno na escola).
Ainda existem duas leis cuja interpretação precisa ser bem compreendida: o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) e o Código Penal – CP (Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
O art. 55 do ECA contém uma norma, à primeira vista, bastante peremptória: “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Em uma interpretação isolada, parece não haver opções para os pais: mesmo a contragosto, estariam obrigados a matricular os filhos nas escolas.
Porém, obviamente, não existe norma isolada no sistema jurídico. Toda interpretação deve ser sistemática, ou seja, deve considerar o conjunto das normas jurídicas. E, como visto, há normas constitucionais, legais e regulamentares que permitem o ensino domiciliar.
Neste caso, há uma peculiaridade, pois o ECA tem um artigo que determina um modo especial de interpretação de suas normas: “Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.
Trata-se da doutrina da proteção integral, que requer prioridade absoluta à criança e ao adolescente, considerando a efetivação de seus direitos como o norte para a interpretação do ECA. A questão, assim, torna-se bastante simples: qualquer norma dessa lei deixa de ser obrigatória se for demonstrado que, no caso concreto, sua aplicação não reflete o melhor interesse do menor.
Além disso, a lei contém o vício já examinado em outros casos: a educação domiciliar nem chegou a ser discutida durante a sua tramitação. Mais ainda: à época de sua promulgação, nem se sabia, no Brasil, da existência dessa modalidade de educação. Nesse sentido, a opção era muito clara: deveria ser imposta a matrícula em estabelecimento escolar porque a alternativa conhecida à época era, simplesmente, a ausência de instrução.
Pois bem. O art. 55 do ECA deve ser interpretado restritivamente, ou seja, somente estão obrigados a matricular os filhos na escola, os pais que não quiserem ou não puderem prover adequadamente o ensino domiciliar.
Ainda é preciso fazer uma referência ao Conselho Tutelar, previsto nos art. 131 a 135 da lei. Seu objetivo é, expressamente, “zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente”. Entre esses direitos, está, obviamente, o de receber a educação adequada.
Assim, os membros do Conselho Tutelar exercem o poder de polícia sobre as famílias no que tange à educação dos filhos. É possível que verifiquem se os menores estão recebendo a instrução adequada para sua idade. Podem, inclusive, realizar testes para avaliar o desenvolvimento intelectual dos menores.
Os limites da atuação do Conselho Tutelar esbarram no poder familiar concedido pelo Código Civil aos pais. Como visto, somente a estes cabe dirigir a educação dos filhos. Caso um membro desse conselho resolva atuar pelo simples fato de os pais estarem educarem os filhos em casa, ele estará usurpando o poder familiar e praticando, portanto, um ato de abuso de autoridade, que implica responsabilidade civil, administrativa e, eventualmente, penal.
A última lei a ser analisada é o Código Penal, que dispõe:

Abandono intelectual
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Perceba-se que não há, aqui, nenhuma obrigação de manter o filho em uma instituição escolar, mas apenas de “prover à instrução primária”, ou seja, de educá-lo, em casa ou na escola. Isso se torna mais evidente ao verificar o tratamento que a Constituição de 1937, vigente à época da promulgação do CP, dava à educação:

Art. 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular.

É difícil imaginar um dispositivo que permita a educação domiciliar de forma mais evidente. Está bem estabelecido o direito primordial dos pais e o caráter apenas colaborativo da atuação do Estado.
Portanto, não matricular os filhos na escola será crime de abandono intelectual apenas se os pais não proverem a instrução em casa. Ademais, é possível, ao contrário, que a matrícula em instituição de ensino que não consiga prover adequadamente a instrução, como é bastante comum, configure esse crime.

Conclusões
A precedente análise do ordenamento jurídico brasileiro permite as seguintes conclusões:

  1. o ensino domiciliar não é proibido no Brasil. Não há nenhuma norma jurídica que, expressamente, o considere inválido. Em casos como esse, aplica-se o princípio constitucional da legalidade, que considera lícito qualquer ato que não seja proibido por lei;
  2. o ensino domiciliar é um dever que os pais ou responsáveis têm com relação aos filhos. A educação, em sentido amplo, deve ser dada principalmente em casa, sendo a instrução escolar apenas subsidiária;
  3. o ensino domiciliar também é um direito dos pais, pois, conforme o Código Civil, uma das atribuições decorrentes do poder familiar é a de dirigir a educação dos filhos. A escolarização somente é necessária se os pais não puderem ou não quiserem educar os filhos em casa;
  4. essa interpretação foi adotada implicitamente pelo Ministério da Educação ao dispor que a obtenção de determinada pontuação no Enem dá direito a um certificado de conclusão do ensino médio, sendo desnecessária qualquer comprovação escolar;
  5. a matrícula em instituição de ensino somente é obrigatória, nos termos da LDB e do ECA, para os menores que não estejam sendo ensinados em casa ou cuja educação domiciliar revele-se, indubitavelmente, deficiente;
  6. somente há crime de abandono intelectual se não for provida instrução primária aos filhos. O CP, ao prever essa conduta, não colocou como requisito que essa instrução deva ser dada na escola; e
  7. o Conselho Tutelar tem o poder, assegurado legalmente, de fiscalizar a educação recebida por crianças e adolescentes, podendo, inclusive, submeter aqueles educados em casa a avaliações de desempenho intelectual condizente com sua idade. Não pode, porém, determinar o modo como serão educados, em casa ou na escola, o que constituiria abuso de autoridade por intromissão indevida na esfera do poder familiar dos pais.
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