Texto
escrito por André de Holanda sobre recente debate sobre ED
apresentado pela Rede Minas
No
dia 27 de junho, a educação domiciliar (em inglês, homeschooling)
foi assunto de discussão no programa Brasil
das Gerais,
transmitido pela emissora de televisão estatal Rede Minas (vídeo da
primeira parte disponível aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=48yS0TB8l0g).
O objetivo – o confesso, ao menos – era “questionar as
vantagens e desvantagens” da prática e “se é saudável tirar
uma criança ou adolescente da escola regular”. Foram convidados
para o programa Ricardo Dias, que educa, há dois anos, os dois
filhos em casa e é presidente da Associação Nacional de Educação
Domiciliar (ANED); Cleber Nunes, que pratica a educação não-escolar
há quase sete anos; o sociólogo Rudá Ricci e a pedagoga Lucíola
Santos. Graças à dupla de especialistas, o show
se tornou uma exibição lamentável de desonestidade argumentativa e
de ignorância dos fatos.
O
rol de convidados foi mal pensado. Para o bem do debate, deveriam ter
sido convocados estudiosos contrários e outros favoráveis à
prática em questão. Longe disso, o que se fez foi chamar dois
supostos especialistas que pouco conheciam o assunto, ambos
contrários à educação domiciliar, e permitir que atacassem, com
artilharia vulgar, a honra e o estado emocional dos pais convidados.
Ricci e Santos não se muniram de fatos e pesquisas. Nem se
dispuseram a ouvir o que dois dos mais longevos praticantes
brasileiros da educação não-escolar (que, juntos, somam oito anos
de experiências) tinham a falar. Foi por isso que a dupla
interrompeu diversas vezes as falas de Cleber e Ricardo, e não
esperou (nem a apresentadora, em alguns momentos) que concluíssem
seus argumentos e relatos. Não foram honestos, não seguiram as
regras da boa argumentação. Pelo contrário, eles se armaram com
peças de acusação direcionadas às pessoas dos pais – não só
daqueles que ali estavam, no estúdio, mas de todos os que adotam,
responsável e corajosamente, um tipo de educação ainda incipiente
no Brasil.
Analiso,
a seguir, selecionando algumas passagens, de que modo Rudá Ricci e
Lucíola Santos defenderam suas opiniões, como havia pouco de
ciência e de bom senso argumentativo no seu discurso. Abaixo, as
falácias cometidas por ambos são destacadas em itálico.
Rudá
Ricci iniciou sua participação no debate – aos 13:56 do vídeo –
interrompendo Cleber Nunes. Cleber, perguntado sobre os processos
judiciais sofridos por sua família, dizia que ele mesmo e sua esposa
foram condenados, cível e criminalmente, por abandono intelectual,
após seus filhos serem aprovados em vestibular de direito (em 2007,
quando eles tinham 13 e 14 anos) e em prova da Secretaria de Educação
de Minas Gerais imposta pelo juiz da vara criminal (em 2008).
Acertadamente, ele concluiu: “Percebi que o interesse não estava
na educação deles, mas que o interesse da Justiça era tão-somente
que eles estivessem na escola.”
Depois
de ouvir isso, Ricci desfia seu contra-argumento. Confusamente, o
sociólogo compara (com falsa analogia) o direito de educar
com o (inexistente, segundo ele) direito ao suicídio: “O Estado
não defende só a pessoa: defende a sociedade, os direitos.” Para
Ricci, que discorda de que as pessoas sejam donas de seus corpos, um
sujeito é incapaz de matar-se sem pôr outros em risco. Mas o que é
que isso tem a ver com educar fora de escolas? É que essa prática
também seria um risco coletivo: “É o fim da democracia, da vida
social.” Por quê? Cleber, Ricardo e TODOS os que educam em casa,
garante Ricci, estão “trazendo uma cultura do egoísmo e do
individualismo extremo” (falácia da omissão, ataque à
pessoa e conclusão irrelevante). Fatos? Pesquisas?1
Nada. Será que a vida social e a democracia inexistem ou sofreram
duro golpe nos Estados Unidos, onde a prática é comum há mais de
três décadas e, hoje, há mais de 2 milhões de crianças e
adolescentes educados em casa?2
Testemunhamos,
com o passar do programa, um Rudá Ricci cada vez mais desleal em
seus argumentos. Recorrendo mais uma vez à falsa analogia e
atacando a pessoa dos convidados, Ricci compara pais
praticantes da educação em casa com políticos e marketeiros
(14:55, parte 1). Em comum, alega, eles deixariam “tirar foto do
aluno pra fazer propaganda do curso”, o que iria “causar um dano
imenso [ao aluno]”. A acusação, sabemos, é irrelevante para
verificar vantagens ou não da educação em casa. E não há, é
óbvio, nenhuma evidência de que tal “exposição” (fantasiosa!)
causasse danos aos estudantes domiciliares.
Ricci
tentou, desde o início, construir um espantalho para ter
em quem bater. O pai que educa em casa não está,
necessariamente, “dando aulas” domiciliarmente. Há quem adote,
por exemplo, métodos como os comumente chamados aprendizagem
natural e auto-aprendizagem (citados por Ricardo, a partir
dos 8:22 do primeiro bloco) e que não acreditam que os filhos
precisem ser “ensinados”. Mas Ricci afirma exatamente o contrário
(falácia da omissão, a partir dos 14:33), certo de que os
pais precisam ser “técnicos” para ter sucesso educando em casa.
Cleber não sustentou, em momento algum do programa, nem que o
testemunho de seus filhos em audiências públicas, nem que
avaliações formais sejam, para ele, evidência de que a educação
em casa é tecnicamente “boa”. Mas Ricci, de novo, inventa um
fato e atribui a Cleber um argumento que lhe é estranho (a
partir dos 15:09).
A
professora Lucíola Santos, chamada a participar do debate aos 18:58
de programa, articulou de modo mais claro os seus argumentos, o que
tornou mais evidente as deficiências deles. Lembremos, antes, mais
uma vez, que o objetivo do programa é discutir as “vantagens e
desvantagens da educação domiciliar”. Pois bem. Vejamos os
argumentos de Santos: (1) Os pais que educam em casa apontam defeitos
na escola, mas não se mobilizam para melhorá-la. Isso se dá (assim
entendi) porque eles não acreditam no Estado; (2) Os pais que educam
em casa (supus que houve generalização) “tem alguma espécie de
posição político-religiosa que os mobiliza a não querer que seus
filhos convivam com pessoas diferentes”. Isso levaria a “processos
de fundamentalismo, em guetos, em situações inviáveis do ponto de
vista social”; (3) Os pais não tem competência, nem tempo, nem
condições para ensinar todos os conteúdos escolares às crianças
até a idade de 17 anos; (4) Se a legislação permitir que pais
eduquem em casa, haverá caos – porque “muitos pais podem fazer
bem, outros, não” – e injustiça – “porque os pais não são
os donos das crianças.”
O
primeiro argumento é mais um ataque à pessoa despropositado.
O que o fato de alguns pais (e não todos!) não “acreditarem no
Estado” como agente de educação nos diz da eficácia ou
ineficácia do ensino domiciliar, das suas vantagens ou desvantagens?
O segundo, mais um ataque à pessoa, também não nos revela
nada da questão em debate! A debatedora não cita nenhum fato que
corrobore a afirmação de que pais que tiram seus filhos da escola
evitam a convivência deles com “pessoas diferentes”. O terceiro
argumento torna constrangedoramente manifesta a ignorância de
Lucíola Santos sobre o assunto. A educação domiciliar, já
dissemos, não é, necessariamente, educação curricular,
conteudista, programática. Considerando este fato, a suspeita em
relação a “competências, tempo e condições” é, toda ela,
vaga e completamente alheia à ciência.
O
quarto argumento de Santos tampouco se sustenta em fatos. Ela prevê
uma situação de “caos” porque “muitos” pais podem “fazer
bem” à educação domiciliar e outros pais, não. Ora, os pais que
educam em casa não defendem que a prática seja imposta sobre outras
famílias. Aliás, suponho que a professora ainda não conhece o caso
do Texas, estado americano que conta, segundo o Texas
Home School Coalition,
com cerca de 120 mil famílias educando (não caoticamente) em casa,
e onde os pais não precisam ter nem certificado de professor para
fazê-lo? Recomendo-lhe o site da organização: http://www.thsc.org.
No mais, Santos, que não definiu o que seria “fazer bem” a
educação domiciliar (o que impossibilita o debate sobre o termo),
garantiu, citando o Estatuto da Criança e do Adolescente, que os
pais não são “os donos” dos filhos3,
sem dizer bem em que isso é relevante para conhecermos “as
vantagens e desvantagens da educação domiciliar”.
O
nível do debate no restante do programa, acredite, leitor, foi pior
– e não merece que nos detenhamos muito nele. Um desfile de
ataques pessoais (uma cena especialmente desconfortável tem
começo aos 17:12), de apelos emocionais (aos 15:13), apelo
à autoridade (a partir dos 7:13 e dos 7:33), apelo à
maioria (a partir de 15:48)... E por aí vai.
Encerro
o texto dirigindo-me a Rudá Ricci e aos acadêmicos que, como ele e
Lucíola Santos, opinam sobre a educação domiciliar, sem antes
pesquisarem devidamente o assunto. Na segunda parte do programa,
Ricci vaticina que “shopping curriculares” como os que
teriam sido feitos pela família de Gilmar e Vânia Lúcia Carvalho
(apresentada no início do segundo bloco) são um “erro estrondoso
que nós só vamos ver dali a pouco, quando tiver 25, 30 anos...”.
Ricardo Dias alegou que “as pesquisas de hoje mostram o contrário”,
mas não conseguiu, na hora, citar nenhuma. Então, Ricci,
respondeu-lhe (7:50): “Não sei que pesquisas, porque eu sou
pesquisador da área... Você há de convir: fui professor de
mestrado e de doutorado da educação, eu conheço a literatura. Não
existe pesquisa que diga isso que você tá dizendo... Não existe. É
definitivo isso.”
As
pesquisas existem. A seguir, cito dez delas que tem por objeto a
socialização e as realizações acadêmicas de crianças e
adolescentes educados em casa. Recomendo todas para os interessados
na matéria. Bom proveito!
- Delahooke, Mona. (1986). Home Educated Children's Social, Emotional Adjustment and Academic Achievements:A Comparative Study. Unpublished doctoral dissertation. Los Angeles, CA: California School of Professional Psychology.
- Medlin, Richard G. (2000). Home schooling and the question of socialization. Peabody Journal of Education, 75(1 & 2), 107-123.
- Ray, Brian D. (2003). Homeschooling Grows Up. National Home Education Research Institue: Salem, Oregon.
- Rudner, Lawrence M. (1999). Scholastic achievement and demographic characteristics of home school students in 1998. Educational Policy Analysis Archives, 7(8).
- Van Pelt, D.A., Allison, P.A. and Allison, D.A. (2009). Fifteen Years Later: Home Educated Canadian Adults. London, ON: Canadian Centre for Home Education (Monograph).
André
de Holanda é graduando em Sociologia na Universidade de Brasília.
Atualmente, prepara trabalho de conclusão de curso sobre a prática
da educação domiciliar no Brasil.
1
Duas pesquisas recentes (Ray, 2003; Van Pelt, Allison & Allison,
2009) verificaram o engajamento social de adultos que foram educados
em casa nos Estados Unidos e no Canadá. Os resultados: comparados
com seus pares não educados domiciliarmente, eles se mostraram mais
frequentes em grupos de atividades e organizações comunitárias, e
mais participativos nas eleições em seus países.
2
Brian D. Ray. (2011). 2.04 Million
Homeschool Students in the United States in 2010.
National Home Education Research Institute.
3
Esse argumento, que já chegou nas altas esferas da Justiça
brasileira, não é novo. Em 2001, o ex-ministro do STJ Francisco
Peçanha Martins, então relator do caso da família Vilhena Coelho
(que defendia o direito de educar em casa os seus três filhos mais
velhos), arguiu que “os filhos não são dos pais”. A família
teve o direito negado por seis votos a dois.
Oi, moro no Paraguai, sou professora de Ingles e a muito tempo sou a favor da educacao domiciliar, tenho contato com pessoas dos Estados Unidos, Canada, Espanha e outros paises que educam em casa, inclusive aqui no Paraguai achei uma.
ResponderExcluirE realmente lamentavel que pessoas com "estudos" sejam tao desinformados sobre o assunto e ignorantes.
Eu mesma estou pensando em tirar minha filha de 8 anos da escola ano que vem porque ela tem algumas dificuldades e como professora sei bem as falencias das escolas publicas e particulares.
Parabens por informar as pessoas sobre a ed.